"Sempre me irritou um bocado que as pessoas dissessem: ‘Você não voltou a escrever’, como se a não ficção que eu escrevi não fosse escrita”, diz Arundhati Roy.
Estávamos em Julho, sentados na sua sala de estar de Roy, com as janelas fechadas para proteger do calor do Verão de Deli. Deli pode estar a sofrer com a queda na economia, o aumento dos crimes contra as mulheres e com as eleições que se aproximam, mas tudo está em sossego em Jor Bagh, uma zona residencial de classe alta ao lado do parque Lodhi Gardens, com os seus túmulos do século XVI. Filthy, o cão rafeiro de Roy, dorme no chão, com a barriga a descer e a subir sincopadamente. O canto melancólico de um pássaro irrompe pelo ar. “É um calau”, afirma Roy, com a expressão de quem está a pensar no assunto.
Roy, mais conhecida talvez pelo O Deus das Pequenas Coisas, o seu romance sobre relações que rompem com as barreiras de casta, classe e religião, levando a assassínios e acabando em incesto, só há pouco tempo se voltou novamente para a ficção. É outro romance, mas por enquanto o tema é segredo. Está ainda a tentar livrar-se do papel de activista e intelectual que tem desempenhado nas duas últimas décadas. E fala, ainda que com alguma relutância, do seu “último compromisso”. É mais ousado do que os seus ataques à ocupação indiana de Caxemira, às guerras americanas no Iraque e no Afeganistão ou ao capitalismo de compadrio. Desta vez, ela virou-se contra Mahatma Gandhi.
Uma pequena editora indiana, a Navayana, pediu-lhe que escrevesse um prefácio para a nova edição de The Annihilation of Caste. Escrito em 1936 por B.R. Ambedkar, o líder progressista que escreveu a Constituição indiana e que se converteu ao budismo, o ensaio é talvez o mais famoso ataque da era moderna ao sistema de castas da Índia. Inclui uma crítica a Gandhi que quis abolir os intocáveis, mas não as castas. Ambedkar considerava todo o sistema de castas moralmente errado e não democrático. Ao ler a troca de argumentos entre Ambedkar e Gandhi, Roy foi ficando cada vez mais perturbada com a posição de Gandhi, que acha retrógada.
A pequena introdução foi crescendo na sua cabeça, “até se tornar quase um livro”. Não procurou tornar-se branda no que dizia respeito a Gandhi e por isso muito provavelmente iria provocar polémica. Até Ambedkar passou um mau bocado. As suas posições eram consideradas de tal forma provocadoras que foi obrigado a fazer uma edição de autor. Quanto mais ela falava do assunto, mais complicado este assunto se tornava.
Roy levou-me para a sala do lado, onde livros e jornais estão espalhados pela mesa de cozinha que faz de secretária. Os escritos coligidos de Ambedkar e Gandhi, volumosos e em combate uns com os outros, estão empilhados numa torre, com marcas entre as páginas. O caderno onde anotou os seus pensamentos numa letra pequena e precisa, está aberto em cima da mesa: um intermediário frágil num debate quase centenário entre gigantes.
“Tive chatices no passado por causa da minha não ficção”, diz. “Jurei: ‘Nunca mais volto a escrever nada com notas de rodapé’.” É uma promessa que não tem conseguido manter. “Há meses que ando a reunir pensamentos, lutando com perguntas, chocada com o que tenho lido”, afirma quando lhe pergunto se já começou o ensaio. “Sei que quando for publicado, muita coisa vai acontecer. Mas é uma coisa que eu preciso de fazer.”
Quando estava na casa dos 30, Roy tornou-se talvez a mais famosa escritora da Índia. A publicação de O Deus das Pequenas Coisas em 1997 coincidiu com o 50.º aniversário da independência da Índia. Foi o início de uma fase agressivamente nacionalista e consumista e Roy foi vista como a representante da [campanha para atrair investimento] Brand India. O romance, o seu primeiro, apareceu na lista de best-sellers do New York Times e venceu o Booker Prize. Vendeu mais de seis milhões de cópias. Os tablóides britânicos publicaram perfis confusos (“um livro de 500 quilos da fábrica de pickles intocável”) e as revistas fotografaram-na — com os seus cabelos a cair em cascata e as suas maçãs do rosto salientes — à frente dos riachos e da folhagem densa de Kerala, onde o romance se passa e que tinha acabado de se tornar um destino turístico.
De ícone a crítica impiedosa
A imagem de Roy como ícone nacional chegou abruptamente ao fim um ano depois, quando o Governo do partido de extrema-direita hindu Bharatiya Janata Party (BJP) conduziu uma série de testes nucleares. Estes foram amplamente aplaudidos pelos indianos que se identificavam com o nacionalismo hindu, muitos deles membros de uma classe média ascendente. No ensaio intitulado The End of Imagination (O fim da imaginação), Roy acusou os apoiantes dos testes de se deixarem inebriar com as demonstrações de poder militar — enveredando pelo belicismo que levou o BJP ao poder pela segunda vez desde a independência —, em vez de se preocuparem com as condições deploráveis nas quais a maioria dos indianos vivia. Publicado em simultâneo pelas revistas anglófonas Outlook e Frontline, o ensaio marcou o seu início de escritora abertamente politizada.
A viragem política de Roy enfureceu muito do seu público de casta alta, urbano, anglófono, ainda que tenha atraído outro. A maior parte dos seus novos fãs nunca tinham ouvido falar no romance, falavam frequentemente outras línguas que não o inglês e sentiam-se marginalizados devido à sua religião, casta ou etnia; sentiam-se deixados para trás pelo crescimento económico da Índia. Devoravam os ensaios que começou a escrever, distribuídos com traduções não autorizadas, e juntavam-se em comícios para a ouvir falar. “Havia todo aquele ressentimento, muito compreensível, com O Deus das Pequenas Coisas, por haver uma pessoa a escrever em inglês e a ganhar imenso dinheiro”, comenta. “Por isso, quando saiu o The end of Imagination deu-se o reverso, uma fúria entre as pessoas anglófonas, mas também um acolhimento por todos os outros.”
A veemência da resposta surpreendeu-a. “Não há nada no ‘Deus das Pequenas Coisas que choque politicamente com o que eu viria a escrever nos 15 anos seguintes”, afirma. “É um campo instintivo.” É verdade que o livro também explorava questões de justiça social. Mas sem a armadura de personagens e enredo, os seus ensaios pareciam didácticos — ou simplesmente errados — aos olhos dos seus detractores, golpes fáceis numa Índia cheia de energia e objectivos. Mesmo aqueles que simpatizavam com as suas posições suspeitavam da sua celebridade e consideravam-na diletante. Mas ficar à margem não era uma opção. “Se eu não tivesse dito nada sobre os testes nucleares, seria como estar a celebrá-los”, afirma. “Eu estava sempre nas capas de todas aquelas revistas. Não dizer nada tornara-se tão político como dizer alguma coisa.”
Virou-se a seguir para as megabarragens que iam ser construídas no rio Narmada. Os habitantes que provavelmente teriam de ser transferidos andavam a fazer manifestações, mesmo depois de o Tribunal Supremo ter autorizado a construção. Viajou pela região, juntando-se aos protestos e criticando a decisão judicial. Em 2001, um grupo de homens acusou-a e a outros activistas de os terem atacado numa manifestação à porta do Supremo. Roy apresentou uma petição para que as queixas fossem retiradas. O tribunal concordou mas achou a linguagem do seu requerimento tão ofensiva (acusou o tribunal de tentar “esquartejar a crítica, atacar e intimidar os que discordam de si”) que a prendeu. “Mostrando a magnanimidade da lei tendo em conta que a arguida é uma mulher”, dizia a sentença, “e esperando que no futuro mais bom senso e sensatez sirvam a causa da arte e da literatura”, Roy é condenada a “um dia de detenção simples” e a uma multa de duas mil rupias.
O documentário da BBC Dam/Age captou parte do drama que rodeou a sua detenção na prisão tipo fortaleza de Tihar. Quando apareceu no dia seguinte, a sua transformação de ícone da Índia a crítica severa do país estava completa. O cabelo, que agora usava bem curto, evocava desconfortavelmente uma mulher ostracizada e uma feminista determinada. Os media de língua inglesa ridicularizaram-na por criticar as barragens, que viam como mais uma prova do crescimento indiano. Os seus trabalhos subsequentes foram também alvo de ataques: as suas denúncias angustiadas ao massacre de muçulmanos no Gujarat em 2002; os planos para a extracção de bauxite em Orissa (agora Odisha) por uma empresa sediada em Londres chamada Vedanta Resources, as operações paramilitares no Centro da Índia contra as populações tribais indígenas e os guerrilheiros de extrema-esquerda [de inspiração maoista] chamados naxalitas; e a presença militar indiana em Caxemira, onde mais de meio milhão de soldados controlam a maioria da população muçulmana que quer a separação da Índia.
Caxemira, território pelo qual a Índia travou três das suas quatro guerras contra o Paquistão, iria tornar-se um dos seus temas centrais. Em 2010, depois de uma série de grandes manifestações durante as quais rapazes adolescentes enfrentavam soldados, comentou publicamente que “Caxemira nunca foi parte integrante da Índia”. Ao sugerir que o Estado indiano era uma mera construção, um produto da partição como o Paquistão, ela estava a ultrapassar uma linha. Nem mesmo os mais progressistas na Índia tinham ido tão longe. Rapidamente se viu no centro de uma tempestade nacional. Uma multidão com pedras, seguida por carrinhas de televisão, apareceu à frente de sua casa. O canal conservador de televisão Times Now emitiu imagens em câmara lenta da sua visita de Roy a Caxemira, durante a qual ela parecia estar a andar numa passerelle, sem responder às perguntas dos jornalistas. De volta a Deli, o Times Now reuniu um painel moderado pelo seu apresentador tremendamente popular, Arnab Goswami, para discutir — entre títulos e notícias em que “raiva” e “Arundhati” eram as palavras mais comuns — se Roy deveria ser presa por instigação à revolta. Quando o único membro muçulmano do painel, Hameeda Nayeem, referiu que Roy não tinha dito nada que a maioria dos caxemires não pensasse, o seu discurso foi interrompido por Goswami. Foram apresentados processos contra Roy em tribunais de Bangalore e Chandigarh, acusando-a de ser “antinacionalista”, “anti-humana” e supostamente de ter escrito num dos seus ensaios que “Caxemira deveria ser libertada dos indianos nus e esfomeados”.
Lutas de classes
O apartamento onde me encontrei com Roy em Julho ocupa o último andar de um prédio de três pisos e tem todos os atributos de uma casa de classe alta — um relvado à volta, uma grade elevada e um pequeno elevador. Há poucos sinais do seu estatuto dissidente: os autocolantes na porta (“nos dias que correm temos de ser muito cuidadosos porque…”); os livros na sala de estar (Howard Zinn, Noam Chomsky, Eduardo Galeano); e, particularmente invulgar no contexto indiano, a ausência de empregados (Roy vive totalmente sozinha). Talvez o mais revelador seja a forma como Roy veio parar a esta casa, pela qual ela passava todos os dias a caminho do trabalho, numa bicicleta que alugava por uma rupia.
Roy nasceu Suzanna Arundhati Roy em 1959 em Shillong, uma pequena cidade montanhosa na extremidade Nordeste da Índia. A sua mãe, Mary, era de uma comunidade fechada de cristãos sírios em Kerala. O pai, Rajib, era um hindu bengali de Calcutá, gerente de uma plantação de chá perto de Shillong e um alcoólico. O casamento não durou muito, e quando Roy fez dois anos, ela e o irmão, Lalith, um ano e meio mais velho, voltaram para Kerala com a mãe. Depois de terem sido mal recebidos pela família, mudaram-se para uma quinta do avô materno de Roy em Ooty, no estado vizinho de Tamil Nadu.
“Depois houve imensas histórias horríveis”, diz Roy, começando a rir. “A minha mãe ficou muito doente, uma asma grave. Achámos que ela estava a morrer. Ela mandava-nos à cidade com um cesto, os merceeiros punham comida no cesto, na maior parte das vezes apenas arroz e pimentos verdes.” A família ficou lá até Roy fazer cinco anos, desafiando as tentativas da avó e do tio de os expulsar de casa (as leis de heranças entre os cristãos sírios beneficiam fortemente os filhos rapazes). A mãe de Roy acabou por se mudar para Kerala e começar uma escola seguindo as premissas do Rotary Club local.
Como filha de mãe solteira, não estava confortável na comunidade conservadora de cristãos sírios. Sentia-se mais em casa nas chamadas castas baixas, ou dálitas, que eram mantidos à distância tanto por cristãos como por hindus de castas mais altas.
“Muito daquilo que penso veio por mim”, diz ela. “Ninguém me prestava atenção suficiente para me doutrinar.” Quando foi enviada para a Lawrence, uma escola fundada por um oficial britânico (o lema: “Nunca desistir”), talvez já fosse tarde demais para a doutrinação. Roy, então com dez anos, diz que a única coisa de que se lembra da Lawrence foi ter-se tornado obcecada com a corrida. O irmão, que gere um negócio de exportação de marisco em Kerala, tem outras memórias do seu tempo ali. “Quando ela estava na preparatória, era bastante popular entre os rapazes mais velhos”, contou-me a rir. “Era também perfeita e tremenda nos debates.”
Roy reconhece que a escola teve a sua utilidade. “Tornou mais fácil a evasão, quando a fiz.” Como filha de um casamento disfuncional e de um divórcio ainda mais vergonhoso, era esperado que Roy fosse mais modesta nas suas ambições. As suas perspectivas de futuro melhoraram com o primeiro liceu que frequentou; era dirigido por freiras e dava treino de secretariado. Mas em vez disso, aos 16 anos, mudou-se para Deli para estudar na Escola de Planeamento e Arquitectura.
Escolheu Arquitectura porque lhe permitia começar a ganhar dinheiro no seu segundo ano, mas também por idealismo. Em Kerala, conheceu o arquitecto britânico nascido na Índia Laurie Baker, conhecido pelos seus edifícios sustentáveis e de baixo custo, e foi tomada pela ideia de fazer um trabalho semelhante. Mas rapidamente percebeu que não iria aprender essas coisas na escola. “Eles queriam que fôssemos empreiteiros”, diz ainda indignada. Ela lutava com perguntas para as quais os professores não pareciam ter repostas: “Qual é o seu sentido estético? Para quem projecta? Mesmo que estejamos a projectar uma casa, qual é a relação entre homem e mulher que o projecto assume? A coisa foi-se tornando cada vez maior. Como estão organizadas as cidades? Para quem são as leis? Quem é considerado cidadão? No final, isto tinha afunilado numa coisa muito política.”
No seu projecto final, recusou-se a desenhar um edifício e em vez disso escreveu uma tese, Desenvolvimento Urbano Pós-colonial em Deli. “Eu disse-lhes: ‘Agora quero falar-vos sobre o que aprendi aqui. Não quero que sejam vocês a dizer-me o que foi que eu aprendi aqui’.” Roy sentia-se apoiada pela contracultura que existia entre os seus colegas, que mais tarde representaria no filme In Which Annie Gives It Those Ones (de 1989). Ela escreveu, projectou e actuou nele — uma figura minúscula com um negro gigante a desempenhar o papel de Radha, que desiste da Arquitectura para se tornar escritora, mas que morre afogada antes de acabar o primeiro romance.
Por esta altura, já tinha rompido o contacto com a família. Sem dinheiro para ficar na residência de estudantes, mudou-se para um bairro de lata com o seu namorado, Gerard da Cunha. (Fingiram que eram casados para respeitar os padrões conservadores da favela.) “Uma coisa é ser-se jovem e decidir ir para o bairro de lata. Para mim, não foi assim. Não havia ninguém. Não havia nada de pitoresco aqui. Foi essa a minha universidade, aquele período em que se está numa posição de absoluta vulnerabilidade. E isso nunca me abandonou.”
Depois da licenciatura, viveu por pouco tempo com Da Cunha em Goa, de onde ele era, mas acabaram por se separar, e ela regressou a Deli. Arranjou um emprego no Instituto Nacional de Urbanismo e conheceu Pradip Krishen, um cineasta independente que lhe ofereceu o papel principal feminino em Massey Sahib (1985), um filme passado na Índia colonial, em que fazia de pastora. Roy e Krishen, com quem mais tarde casaria, colaboraram noutros projectos depois desse, incluindo Bargad, uma série televisiva de 26 episódios que nunca chegou a ficar terminada sobre o movimento independentista indiano, e dois filmes, Annie e Electric Moon (1992).
Os antecedentes de Krishen não poderiam ser mais diferentes dos seus. Académico em Balliol [Oxford] e ex-professor de História, Krisher, um viúvo, vivia com os pais e dois filhos numa casa ampla no bairro chique de Chanakyapuri. Quando se juntaram, mudaram-se para um apartamento autónomo no piso de cima. Roy mergulhou no mundo do cinema independente de Deli. Atraíam-lhe os temas progressistas dos filmes, mas era um mundo dominado pelas famílias de elite, um mundo que lhe era estranho e com o qual não tinha ligação. Passava cada vez mais tempo a dar aulas de aeróbica, para ganhar o seu próprio dinheiro, e a dar-se com artistas que conhecia na faculdade.
Já tinha começado a trabalhar no seu romance quando saiu The Bandit Queen, um filme baseado na vida de Phoolan Devi, uma mulher de casta baixa e famosa líder de um gangue, que foi vítima de uma violação em grupo e da prisão. Ficou furiosa com a forma como o filme a retratava: como vítima cuja vida fora definida pela violação e não pela rebeldia. “Quando vi o filme, fiquei fula, em parte porque eu tinha crescido em Kerala, vi aqueles filmes em malaiala [língua regional] em que em todos os filmes — todos os filmes — uma mulher era violada”, diz. “Durante muitos anos, acreditei que todas as mulheres eram violadas. Depois li nos jornais Phoolan Devi a descrever como foi ser violada. Li o livro no qual o filme se baseou e percebi que aqueles tipos tinham acrescentado as suas próprias violações… Pensei: ‘Vocês transformaram a mais famosa bandida da história na mais famosa vítima de violação.” O ensaio de Roy sobre o filme, The Great Indian Rape Trick, publicado na agora defunta revista Sunday, flagelava os autores de Bandit Queen, referindo que eles nem sequer se incomodaram em encontrar-se com ela ou em convidá-la para o visionamento.
O artigo alienou muitos dos que trabalhavam com Roy. Krishen, que dá mostras de uma lealdade inabalável mesmo depois de se terem separado, refere que foi visto como uma traição nos restritos circuitos cinematográficos de Deli. Para Roy, foi uma lição sobre como funcionam os media. “Vi com muita atenção o que aconteceu a Phoolan Devi”, afirma. “Vi como os media nos podem escavar até ficar só uma concha oca. E tive sorte em aprender com isso. Quando chegou a minha vez, já tinha as minhas barricadas erguidas.”
Um país nu e faminto
Quando me encontrei com Roy no aeroporto de Nova Deli dias depois de termos falado, ela irrompeu da multidão, ignorando os olhares fixos em si. Tinha recusado o pedido de participar num encontro público em Caxemira, mas mesmo assim continuava a haver algo político no facto de ela viajar para lá uma semana depois de oito soldados indianos terem sido mortos numa emboscada. Seria certamente isso que pensariam os passageiros do voo que apanhámos, peregrinos hindus que iam visitar o templo de Amarnath. De tempos a tempos, enchiam o pequeno avião com gritos “Bom Bhole” ou “Hail Shiva”, com o punho direito erguido em uníssono. Uma vez em Srinagar, a capital, Roy era muitas vezes parada por caxemires que lhe queriam agradecer por falar contra o Estado indiano. Também tinham esperança de que ela concordasse em tirar uma fotografia com eles. O que ela geralmente fazia.
Mas na maior parte do tempo manteve-se longe dos olhares públicos. Estava hospedada em casa de um jornalista amigo e enquanto ele e um colega falavam ao telemóvel, seguindo uma história sobre um confronto que eclodira entre peregrinos de Amarnath e transportadores caxemires, distribuía pacotes de café Lavazza trazidos de Deli, prestando pouca atenção ao assunto. Mais tarde, recusou ir ver um novo documentário sobre a guerrilha naxalita, preferindo ficar a trabalhar no seu romance.
Roy tinha vindo a Caxemira sobretudo para visitar alguns amigos, mas foi difícil evitar o conflito. Dias depois, fomos até ao campo, uma paisagem de canais a brilhar no meio de campos verdes e caminhos empedrados, pontuado por figuras armadas em camuflado. Às vezes são grupos da Força Central da Polícia de Reserva, outras, da polícia local, e uma vez por outra, como se distingue pela protecção na cabeça, soldados das forças de contraguerrilha Rashtriya Rifles. “Havia bunkers por todo o lado em Srinagar quando comecei a vir cá”, diz. “Agora usam vigilância electrónica na cidade. A polícia às claras é para o interior.”
No início daquela semana em Srinagar, o policiamento era descarado. Tinha sido convidada a falar num encontro organizado por Khurram Pervez, que trabalha para a Jammu and Kashmir Coalition of Civil Society [Coligação da Sociedade Civil de Jammu e Caxemira], uma organização que tem produzido relatórios detalhados sobre valas comuns e assassínios à margem da lei em Caxemira. Enquanto umas 40 pessoas estão sentadas no chão de pernas cruzadas — activistas, advogados, jornalistas e estudantes —, Pervez pede que se desliguem os telefones e que estes fiquem à vista para impedir gravações sub-reptícias que possam ir parar às mãos das autoridades.
Roy coloca os óculos de leitura que, juntamente com os livros que tem à sua frente, uma selecção de não ficção que escreveu ao longo dos últimos 15 anos (acabados de ser reeditados pela Penguin India numa caixa de cinco volumes coloridos) deu à reunião um ar de seminário improvisado. Começou por pedir à audiência que discutisse o que lhe ia pela cabeça. Um jovem advogado que cresceu numa vila a cerca de 50 quilómetros de Srinagar contou a história de duas mulheres que, depois de terem sido violadas por soldados, passaram a noite a tremer em partes separadas de um balneário, demasiado envergonhadas para voltar para casa, ouvindo apenas o choro da outra. Roy ouviu atentamente este e outros relatos parecidos, levando ocasionalmente a conversa para lá de Caxemira, para as fissuras e fracturas da própria Índia, incluindo as florestas do Centro indiano, onde passou mais de duas semanas em 2010 com os guerrilheiros de esquerda radical e os seus aliados tribais para o seu último livro, Broken Republic (2010).
“Sabe, sinto-me triste quando estou a viajar pela Índia e vejo caxemires a serem recrutados para as Forças de Segurança da Fronteira”, afirma. “É o que este país faz às pessoas, contratá-las de um lado para as pôr a lutar no outro, contra pessoas que podem parecer à partida diferentes, mas que na verdade enfrentam o mesmo tipo de opressão. E esta é razão pela qual, se calhar, é mesmo importante poder falar para ambas as partes.”
Agarra num dos livros que tem à sua frente, o amarelo-limão Listening to Grasshoppers, e encontra uma passagem do ensaio Azadi ou Freedom. Nele descreve uma manifestação em Srinagar, onde foi em 2008, na qual se pedia a independência da Índia. Lê, numa voz limpa e suave: “O slogan que me atravessou como uma faca foi este: Nanga bhooka Hindustan, jaan se pyaara Pakista” — a Índia é um país nu e faminto, o Paquistão é-nos mais caro do que a própria vida. “Nesse slogan vi as sementes da facilidade com que as vítimas se podem transformar agressores.”
A conversa prolongou-se durante horas e estendeu-se do capitalismo global às alterações climáticas antes de voltar a Caxemira. Os habitantes de Caxemira identificam-se com o Paquistão? Alguns sim, outros notoriamente não. E o papel das mulheres na luta pela autodeterminação de Caxemira? Como podem elas ser ouvidas, se já é tão difícil o serem aqui mesmo, nesta sala? Sob aquela canícula impiedosa, o grupo dividiu-se em facções e começou a mostrar-se cansado e agitado. Foi quando Roy decidiu dar por terminada a sessão com uma piada do filme dos Monty Python, A Vida de Brian. “No filme, Brian, pergunta a um grupo de guerrilheiros: ‘Vocês são a Frente Popular da Judeia?’”, diz enquanto imita o sotaque inglês. “E a resposta ofendida que recebe deste grupo é: ‘Não, de modo nenhum. Somos a Frente do Povo da Judeia’.” A piada, na verdade uma paródia inteligente às facções radicais, deixou Roy a rir à gargalhada. E acabou por mudar a temperatura emocional que já se fazia sentir na sala. Enquanto saíamos e caminhávamos cá fora, já os vários grupos pareciam sentir-se mais à vontade uns com os outros. Mais tarde, um homem que tinha acabado o curso de Ficção, confessou o seu desapontamento por nem se ter chegado a falar de literatura.
À mesa de cozinha
Para além do livro sobre Gandhi, há muito mais coisas que a têm mantido afastada da ficção. Em Maio, quando as guerrilhas naxalitas mataram pelo menos 24 pessoas — incluindo um político do Congresso que formou uma milícia de extrema-direita brutal e a quem Roy tinha criticado no seu último livro —, pediram-lhe imediatamente um comentário, que ela declinou. “Então, o que fizeram foi republicar uma antiga entrevista minha e fingiram que se tratava de uma novidade”, diz.
“Tudo o que eu precisava de dizer de uma forma directa, já o disse. Agora, se o voltasse a fazer, estaria a repetir-me, mas com outros pormenores”, afirma. Estamos na sua sala de estar e ela faz uma pausa, antecipando que a próxima pergunta seja sobre quão política poderá ser a sua ficção. “Não sou o tipo de pessoa que goste de usar a ficção como um meio. Acho que a ficção é irredutível. É ela mesma. Não é um filme, não é um tratado político, não é um slogan. O que alimenta o meu pensamento político, as proteínas de que é feito esse alimento, tem de ser desfeito e esquecido, até que venha à superfície, tal como o suor vem à flor da pele.”
Mas a tarefa de editar na Índia de hoje é uma aventura arriscada. Há ordens do tribunal para que determinados livros sejam retirados de circulação ou nem cheguem mesmo a público, e nem é obrigatório que tenham um cariz político explícito. Ainda muito recentemente isso aconteceu com The Hindus: An Alternative History, da autoria de Wendy Doniger, editado pela Penguin India. Um grupo de pressão conservador hindu moveu um processo e mandou recolher todas as cópias em circulação. A Penguin é também a editora de Roy e ela sentiu-se obrigada a manifestar o seu protesto.
Não revela nada sobre o seu próximo livro, nem mesmo aos seus amigos mais próximos. Mas garante que vem quebrar tanto com a sua não ficção como com o seu primeiro romance. “Não estou a tentar escrever outra vez O Deus das Pequenas Coisas. É muito mais fácil perceber claramente onde está o coração, o centro emocional de um livro que fala sobre uma família — que afinal era do que se tratava emO Deus das Pequenas Coisas — do que este, onde andei mais às apalpadelas conceptuais.” Antes de se embrenhar no ensaio sobre Ambedkar e Gandhi, estava a dar os primeiros passos no novo romance, a desenhá-lo, como costuma fazer quando começa um projecto, a tentar perceber-lhe a estrutura. Depois escreve à mão. O que ela chama “polimento” acontece à mesa de cozinha, com o portátil à frente.
“Não me sinto ligada a nenhum local em particular”, responde quando lhe pergunto sobre a importância da rotina na sua escrita. “O que não preciso mesmo é de ter gente em cima de mim.”
A seguir a O Deus das Pequenas Coisas ser publicado, começou a doar algum do dinheiro que ia ganhando. Mandou o pai, que reapareceu quando viu a filha no filme Massey Sahib mas sem a intenção de lhe extorquir dinheiro, para um centro de reabilitação — ele morreu em 2007. Em 2002, quando ganhou um prémio da Fundação Lannan [de apoio às artes e diversidade cultural], Roy doou o prémio de 253 mil euros a 50 pequenas organizações na Índia. E em 2006 fundou, juntamente com amigos, um fundo onde deposita tudo o que ganha com os seus trabalhos de não ficção para apoio a várias causas progressistas espalhadas pelo país.
“Nunca estive interessada nisso de se ser um escritor profissional, quando se escreve um livro que tem sucesso e depois outro, e outro ainda”, diz, enquanto reflecte sobre como O Deus das Pequenas Coisas a prendeu tanto como libertou. “Há um medo que eu tenho: quando se é famoso, ou se fez alguma coisa, toda a gente quer ver-nos a produzir a mesma coisa, a ser a mesma pessoa, como se nos quisessem congelar no tempo.” Roy está a referir-se ao momento na sua vida em que, farta de ver fotografias suas — o ícone glamoroso da Índia transformado na glamorosa dissidente —, resolveu cortar o cabelo. Mas é fácil percebermos que poderia dizer precisamente o mesmo sobre a situação em que se encontra agora. O ensaio sobre Gandhi e Ambedkar terá cumprido um conjunto de expectativas antes de se poder virar para algo completamente novo. “Não quero essa enorme bagagem. Quero poder viajar com pouca coisa.”
Exclusivo PÚBLICO/ The New York Times
Siddhartha Deb é autor do livro The Beautiful and the Damned: A portrait of the New India